sexta-feira, fevereiro 21, 2014

ERA UMA TARDE...

Era uma tarde
De vento agreste e de inclementes chuvas.
À porta do palácio, a multidão
De aleijadinhos, orfãos e viúvas,
Mal coberta de andrajos, a tremer,
Pedia pão...

Quem havia de, entretanto, aparecer ?
Vinha Isabel com uma abada de ouro,
Um deslumbrante e autêntico tesouro,
E ia já dá-lo aos pobrezinhos, quando
El-Rei lhe tolhe o passo...
__Que trazeis vós, Senhora, no regaço ?__
Pergunta D. dinis. Ela corando,
Responde-lhe: __São rosas, meu Senhor...
__Rosas no Inverno ? Não será engano ?...
__É que estas rosas são de todo o ano, __
Diz a Rainha então,
__São rosas de piedade e de perdão,
Rosas de luz,
Rosas de amor,
Duma roseira que plantou Jesus...__
E, desdobrando o seu brial de seda,
Mostrou-lhas, a sorrir...
Cada moeda
Se transformara, por milagre, em flor...
E, frescas, orvalhadas e viçosas,
Aos pés de El-Rei cai um montão de rosas...

Pelo ar derramou-se um tal aroma
Tão doce e tão fragrante,
Como se alguém tivera nesse instante
Quebrado uma redoma
De bálsamos celestes...

    
 Cândido Guerreiro

segunda-feira, fevereiro 17, 2014

O RELÓGIO

Corda, ponteiros, numeros, _ e tanta
Coisa lá dentro !  Finas rodas de aço !
Ao seu comando, débil de cansaço,
Ora a gente se deita, ora levanta.
    
A voz do tempo !  Sossegada canta
Imperturbável, dominando o espaço.
Nova manhã desperta no regaço
Da noite, como surge a flor na planta. 
    
O Passado, o Presente sempre iguais !
O mesmo giro sempre, sempre... Aquela
Pontualidade que não pára mais !
    
Já não te ouço sequer !  Nem sinto o mundo !
Vai-se-me a vida sem eu dar por ela ...
Um segundo... um segundo... outro segundo...
              Cabral do Nascimento

quinta-feira, fevereiro 13, 2014

AZULEJOS

Asume el aire
su vocación perdida
la densidad
abierta de tus manos
cuando en la tarde llueve.
    
Entre tu nombre
y el mío hay un lugar
donde no falta
la luz, la arquitectura
que nace de tu sombra.
    
Irrepetible,
sorprendida en su vuelo
tu otra imagen.
La certeza del pájaro
te acoge en su huida.
    
Ojos furtivos
(azules) de mujer
pueblan la casa.
Una mirada incendia
las paredes del cuarto.
    
Última escena:
(lejos) tu voz desnuda
es un lenguaje
cifrado en lo más liso
del agua, en lo más hondo.
Àngel Campos Pámpano

segunda-feira, fevereiro 10, 2014

SENTENÇAS

Ai de quem ria e não tente
Sair da sua alegria !
É destino da serpente,
Do verme que anda contente
Sem procurar ver o dia.
    
Dura a vida enquanto dura
O bater do coração.
Semeia, moço a ventura
Que essa mesma, com fartura
Colherás com tua mão.
    
Semear _ verbo que encerra
O dever de toda a gente !
Há sempre um canto de terra
Quer no vale, quer na serra
Adonde caiba a semente...
    
Ouve o Amor _ o que ele diz
_ Seja a tua companheira
A abençoada raiz
Do teu lar que é o teu país:
_ Faz do Amor tua fronteira !
    
Planta mais, se já plantaste,
Desde novo até velhinho;
Quando nasceste encontraste
Tanta fruta em tanta haste,
Tanta sombra em teu caminho !
    
Cala a voz do sentimento
Quando não for de bonança,
Palavras leva-as o vento,
Mas volta a todo o momento
Seu eco à nossa lembrança.
    
Toda a ventura é singela
Navega no mar do Mundo !
Navega !  Olha o barco à vela
A deslizar na água bela...
E o mar alto não tem fundo !
    
És como a barca esquecida :
Ditoso, porque não sondas.
Se é profundo o mar da vida
E a altura desconhecida
Que anda por baixo das ondas !
    
   Pedro Homem de Melo
          1904 - 1964

sábado, fevereiro 08, 2014

REFLEXÃO

Quanto mais me interrogo, dou comigo
A negar a resposta ao que pergunto.
No pouco da verdade que persigo
O pouco é quase muito.
    
No instante em que resumo a vida inteira
Vejo com mágoa a terra semeada:
No tudo que colhi da sementeira
O tudo é quase nada.
    
Se me lanço no mar, bebo coragem
No turbilhão de espuma: não rejeito
A minha condição de ser a imagem
Do náufrago perfeito.
    
E por isso resisto às ondas bravas:
Não é branca a bandeira que eu agito.
No silêncio da noite sem palavras
O silêncio é um grito.
    
É som que me magoa e me deslumbra:
Tinge de esperança a noite enegrecida.
Na morte que cintila na penumbra
A morte é quase vida.
    
                Fernando Vieira

sábado, fevereiro 01, 2014

RAISON D'ETRE

Des pierres claires, monde en moi, et la lance vert
De l'attente _ à l'Etre je rendrai un compte plus sûr
Que de tout ce qu'a tissé l'espérance
Dans le verbe qui de l'esprit  éclôt.
    
Sans repos aucun, pas même avec moi
Dans les liens nécessaires de la cobérence,
Mais seulement poète par châtiment,
Avec un coup de folie et d'innocence.
    
Je connus ceux qui prennent pour concret
Amour absurde, astre de voix fait,
Comme on fait à la main, utile, l'objet:
Et je sais que ceux-là payèrent songe  et os
Pour que, à l'épaule, soit bien tourné
Le viable sensé qui dit  "notre".
    
Ile de feu au loin, anneaux que je suis
D'irréversible fer enchaîné
(Le fils, le père, la vie passée) _ et je vais
Tel que je suis venu, du destin étranger..
    
Jusqu'à ce que, par poussées et en commencement
De forme dans la parole que je tire de moi,
Je sois ce que je suis maintenant quand j'offre
Ma raison d'etre dans ce que je délire. .
     
      Vitorino Nemésio
         1901 _ 1978